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segunda-feira, 3 de setembro de 2018

O INOMINÁVEL TORMENTO DA EXIGÊNCIA DE ENUMERAR, EM CONFISSÃO, TODOS OS PECADOS COMETIDOS

Neste patíbulo têm sido mais que cruelmente torturadas as almas daqueles que eram afetados por algum senso de Deus. De começo, eram convocados à contagem, dissecavam os pecados em galhos, em ramos, em ramúsculos, em folhas, segundo as fórmulas destes; então, pesavam qualidades, quantidades, circunstâncias, e assim a coisa avançava um pouquinho. Quando, porém, haviam prosseguido mais longe, “o céu por todos os lados e por todos os lados o oceano”, nenhum porto à vista, nenhum ancoradouro, quanto mais de travessia tinham feito, sempre maior massa se lhes deparava aos olhos; aliás, era como se alteassem elevadas moles, nem aparecia qualquer esperança de livrar-se delas, sequer ao menos após longos rodeios. Estavam, assim, encravados entre a vítima e a pedra, afinal nem outra saída se achava senão o desespero. Então, esses cruéis carniceiros, para que aliviassem as feridas que haviam infligido, aplicaram certos lenitivos, isto é, que cada um fizesse o que em si estivesse. Mas, outra vez, novas angústias pungiam estridentes. Na verdade, novas torturas escorchavam as míseras almas: “Não despendi tempo suficiente”; “Não me esforcei com o justo empenho”; “Por negligência, deixei de fazer muitas coisas”; e, “A despreocupação que tem provindo de meu descaso não é desculpável!” Eram ainda sugeridos outros remédios que aliviavam dores desta natureza: “Arrepende-te de tua negligência; desde que ela não seja desmesurada, ser-te-á perdoada.” Mas, todas essas coisas não podem cobrir a chaga, nem são lenitivos do mal como são venenos rebuçados de mel, para que com seu amargor não repugnem ao primeiro gosto; pelo contrário, penetram nas partes mais recônditas antes que sejam sentidas. Portanto, essa terrível voz está sempre a instar e a ressoar aos ouvidos: “Confessa todos os teus pecados”; não se pode vencer esse horror, senão mediante segura consolação. Neste ponto, que os leitores reflitam quão possível é fazer a conta dos atos de todo um ano e coligir o que porventura se pecou cada dia, quando a experiência convence a cada um de que a memória se confunde até mesmo quando à noite se têm de passar em revista as transgressões de apenas um só dia, tão grande multidão e variedade se lhes enfileira! Ora, não estou falando a respeito dos hipócritas crassos e estúpidos que, levados em conta três ou quatro pecados mais graves, se julgam desobrigados do dever confessional, mas acerca dos verdadeiros adoradores de Deus que, depois que se vêem arrasados pelo exame realizado, também adicionam essa afirmação de João: “Se nosso coração nos acusa, Deus é maior do que nosso coração” [1Jo 3.20]. E assim tremem de pavor à vista desse Juiz, cujo conhecimento supera muitíssimo nosso senso.

João Calvino