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quarta-feira, 19 de setembro de 2018

REFUTAÇÃO DA EVIDÊNCIA EVOCADA DE ECLESIÁSTICO 16.14 E HEBREUS 13.16 QUANTO AO MÉRITO DAS OBRAS

Sei que os sofistas abusam de certas passagens das quais provem que a palavra mérito se acha nas Escrituras em relação a Deus. Citam do Eclesiástico [16.14] a afirmação: “A misericórdia fará lugar a cada um segundo o mérito de suas obras.” Da Epístola aos Hebreus [13.16], porém, “Da beneficência e da filantropia não vos esqueçais, pois que com tais sacrifícios Deus se faz propício.” Por ora abro mão de meu direito de rejeitar a autoridade do Eclesiástico. Contudo, nego que estejam citando fielmente o que o Eclesiástico escreveu, não importa quem tenha sido aquele escritor, pois assim tem o original grego: pa,sh| evlehmosu,nh| poih,sei to,pon eç[kastoj ga.r kata. ta. e;rga/ au`tou/ eu`rh,sei  “A toda misericórdia fará lugar, pois, cada um achará segundo suas próprias obras.” Que este seja o texto genuíno, que foi corrompido na versão latina,transparece tanto do simples conjunto destas palavras, quanto do contexto mais amplo da sentença precedente. Na Epístola aos Hebreus não há por que nos lancem armadilhas em um só verbete zinho, quando nas palavras gregas do Apóstolo outra coisa não se tem além de sacrifícios que agradam e são aceitos por Deus. Só isto seria fartamente suficiente para conter e abater a insolência de nosso orgulho: que não atribuamos às obras qualquer dignidade além da fórmula da Escritura. Com efeito, o ensino da Escritura é que nossas boas obras estão sempre salpicadas de muitas manchas pelas quais, com razão, Deus se ofende e contra nós se indigna, tão longe está de que, ou que possam reconciliar-nos com ele, ou provocar sua benevolência para conosco. Entretanto, porque as examina em função de sua indulgência, não de seu direito supremo, as aceita exatamente como se fossem as mais puras possíveis, e por isso, ainda que destituídas de mérito, as galardoa com infinitos benefícios, tanto da presente vida, quanto também da vida futura. Pois não aceito a distinção feita por varões de outra sorte doutos e pios de que as boas obras são merecedoras dessas graças que nos são conferidas nesta vida, que o único prêmio da fé é a salvação eterna, porquanto o Senhor quase sempre coloca no céu a recompensa dos labores e a coroa do combate. Por outro lado, atribuir de tal modo ao mérito das obras o fato de que somos pelo Senhor cumulados de graças, umas sobre as outras, que o mérito da graça é removido, é contrário ao ensino da Escritura. Ora, visto que Cristo diz que ao que tem se lhe dará [Mt 25.29; Lc 8.18], e sobre muitas coisas o servo que se haja conduzido fielmente será constituído nas coisas pequenas [Mt 25.21], ele mostra, no entanto, ao mesmo tempo, em outro lugar, que as expressões de prosperidade dos fiéis são munificências de sua benignidade graciosa. “Ó vós”, diz ele, “todos os que tendes sede, vinde às águas, e os que não tendes dinheiro, vinde, comprai, e comei; sim, vinde, comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite” [Is 55.1]. Portanto, tudo quanto agora se confere aos piedosos em ajuda à salvação, ainda mesmo a própria bem-aventurança, é mera beneficência de Deus. Contudo, tanto nesta, quanto naqueles, ele testifica que tem consideração pelas obras, porquanto, para atestar a magnitude de seu amor para conosco, digna de tal honra não apenas a nós mesmos, mas também aos dons que nos prodigalizou.

João Calvino