Se a alguém parece absurdo que assim sejam condenados, em sua generalidade,
todos os desejos pelos quais é o homem afetado por natureza, quando foram nele
implantados por Deus, o autor da própria natureza humana, respondemos que de
modo algum estamos condenando aquelas disposições que Deus assim imprimiu no
espírito do homem desde a criação original, visto que daí não podem ser erradicadas,
senão com a própria humanidade; ao contrário, condenamos apenas os impulsos
insolentes e desenfreados que se põem em conflito com a ordenança de Deus.
Agora, porém, quando, em razão da depravação da natureza, todas as faculdades
estão a tal ponto viciadas e corrompidas que em todas as ações sobressai a perpétua avtaxi,a [ataxí* – desordem] e imoderação, porquanto não se podem separar
as disposições dessa sorte de incontinência, por isso contendemos que elas são viciosas.
Ou, caso se prefira ter a síntese da matéria em menospalavras, ensinamos que
são maus todos os desejos naturais dos homens e os pronunciamos culposos de
pecado, não pelo fato de serem naturais, mas porque são desregrados. Contudo, são
desregrados porque de uma natureza corrompida e poluída nada pode proceder de
puro nem sincero. Aliás, Agostinho não afasta tanto deste ensino quanto se mostra
na aparência. Quando quer evitar as calúnias dos pelagianos, às vezes se guarda de
chamar pecado à concupiscência; mas quando escreve que, enquanto a lei do pecado
permanecer nos santos, só a culpa é deles removida, dá a entender suficientemente
que, quanto ao sentido, está de acordo conosco.
João Calvino