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quarta-feira, 19 de setembro de 2018

O SENTIDO REAL DAS AFIRMAÇÕES BÍBLICAS NAS QUAIS PARECE QUE SE ATRIBUI MÉRITO ÀS BOAS OBRAS DIANTE DE DEUS

Entretanto, quanto ao que mostra a Escritura, que as boas obras dos fiéis são causas pelas quais o Senhor os galardoe, isso se deve entender de maneira que em nada se prejudique o que já dissemos, ou, seja, que a causa eficiente de nossa salvação reside no amor de Deus, o Pai; a causa material, na obediência do Filho; a causa instrumental, na iluminação do Espírito, isto é, na fé; a causa final é a glória da incomensurável benignidade de Deus. Nestas, nada impede a que o Senhor abrace as obras como sendo causas inferiores. Mas, donde procede isto? Com efeito, aqueles a quem, em sua misericórdia, ele destinou à herança da vida eterna, a esses, por sua administração ordinária, ele induz à posse por meio das boas obras. Ao que precede na ordem de sua administração, ele intitula causa do que se segue. Desta forma, ele às vezes deduz a vida eterna das obras, não que se deva referir-se a elas como a coisa admitida, mas porque justifica aqueles a quem escolheu para que, por fim, os glorifique [Rm 8.30]. A primeira graça, que é como uma escalada para a segunda, de certa maneira é chamada sua causa.214 Sempre que, porém, se faz necessário assinalar a verdadeira causa, ordena recorre-se não às obras, mas que nos mantenhamos unicamente na consideração da misericórdia. Pois, que significa isto que ensina através do Apóstolo: “O salário do pecado é a morte; a graça do Senhor, a vida eterna” [Rm 6.23]? Por que ele não opõe a justiça ao pecado, como opõe a vida à morte? Por que então não estatui a justiça como causa da vida, como estatui o pecado como causa da morte? Ora, assim se formularia corretamente a antítese que, com esta variação, está um tanto rompida. Mas, o Apóstolo quis, mercê desta comparação, exprimir aquilo que era matéria de fato: aos merecimentos dos homens deve atribuir-se a morte; a vida está posta unicamente na misericórdia de Deus. Enfim, com essas expressões denota-se seqüência mais do que causa, porque, cumulando graças a graças, Deus toma das primeiras causa para adicionar as segundas, para que não deixe algo passar sem enriquecer a seus servos. E a tal grau estende sua liberalidade que, não obstante, sempre quer que contemplemos a graciosa eleição, que é sua fonte e início. Pois, ainda que ele ame as dádivas que diariamente nos confere, visto que procedem dessa fonte, no entanto, nos incumbe de suster essa graciosa aceitação que é a única que nos pode sustentar a alma; e, além disso, de tal modo subordina os dons de seu Espírito à causa primeira,que então prodigaliza, que nada lhe prejudiquem.

João Calvino