O que prescrevem os teólogos romanistas? Determinam que todos, “de ambos
os sexos”, imediatamente após chegarem aos anos de discernimento, confessem
todos os seus pecados a seu próprio sacerdote, no mínimo uma vez ao ano; nem se
perdoa o pecado, a não ser que tenha sido firmemente concebida a intenção de
confessar-se, intenção que, oferecida ocasião, se não for levada plenamente a efeito
por eles, já não lhes resta nenhum acesso ao paraíso. Além disso, afirmam que o
sacerdote, na verdade, tem o poder das chaves, mercê das quais desliga e liga o
pecador, visto não ser sem efeito a palavra de Cristo em Mt 18.18: “Tudo quanto
houverdes ligado” etc.
Todavia, em relação a este poder lutam entre si encarniçadamente. Uns dizem
que em essência há uma única chave, a saber: o poder de ligar e desligar, que para
o bom uso de fato se requer conhecimento apropriado dos pecados, mas esse conhecimento
lhes é apenas à guisa de acessório, não lhe está ligado essencialmente.
Outros, porque viam que esse era desbragamento demasiadamente desenfreado,
enumeraram duas chaves: discernimento e poder. Outros, em contrapartida, como
vissem com tal moderação coibir-se a improbidade dos sacerdotes, forjaram outras
chaves: a autoridade de discernir, que usassem em fixar as penitências e o poder,
que exercessem na execução de sua sentença, a acrescentar o conhecimento das
faltas como conselheiro.
Não ousam, porém, interpretar este ligar e desligar simplesmente no sentido de
remitir e apagar pecados, uma vez que ouvem o Senhor a proclamar no Profeta: “Eu
sou, e não há outro senão eu; sou eu, sou eu aquele que apaga tuas iniqüidades, ó
Israel” [Is 43.11, 25]. Dizem, porém, ser função do sacerdote pronunciar os que
tenham sido ligados ou desligados e declarar de quem os pecados tenham sido remitidos
ou retidos, porém declará-lo ou mediante confissão, quando absolve e retém pecados, ou através de sentença, quando excomunga e recebe à comunhão dos sacramentos.
Finalmente, quando compreendem que ainda não se desvencilharam deste obstáculo,
ou, seja, que sempre é possível que sejam contestados de serem freqüentemente
ligados e desligados por sacerdotes indignos, os quais, depois, não ligam ou
desligam no céu, o qual é seu último refúgio, respondem que a outorga das chaves
deve ser tomada com certa limitação: que Cristo prometeu que a sentença do sacerdote
que for proferida com justiça perante seu tribunal haveria de ser aprovada,
segundo o quê postulavam os merecimentos do ligado ou desligado. Sustentavam,
ademais, que essas chaves foram dadas por Cristo a todos os sacerdotes, as quais
lhes são conferidas pelos bispos em sua elevação ao sacerdócio, mas que seu livre
uso só está na posse daqueles que desempenham funções eclesiásticas, junto aos
excomungados e os suspensos do ofício sacerdotal permanecem de fato as próprias
chaves, ainda que enferrujadas e atreladas. E os que dizem essas coisas podem, com
justiça, parecer modestos e sóbrios acima de outros que, em nova bigorna, forjaram
novas chaves, com as quais ensinam estar aferrolhado o tesouro da Igreja, chaves
que discutiremos depois, em seu devido lugar.
João Calvino