Se, porém, atentarmos para as quatro modalidades de causas que os filósofos
preceituam que se deve considerar na efetuação das coisas, nenhuma delas acharemos
que se ajuste às obras para que nossa salvação se consuma. Pois, a Escritura por
toda parte proclama que a misericórdia do Pai celeste e seu gracioso amor para
conosco são a causa eficiente para adquirir-nos a vida eterna; a causa material é
por meio de Cristo com sua obediência, mediante a qual adquiriu justiça para nós; e
qual diremos ser a causa formal, ou também instrumental, senão a fé? E João
compreende estas três, a um tempo, em uma sentença, quando diz “Deus amou ao
mundo de tal maneira que deu seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele
crê não pereça, mas tenha a vida eterna” [Jo 3.16].
Mas o Apóstolo testifica que a causa final é não só a manifestação da justiça
divina, como também o louvor de sua bondade, onde também traz à lembrança, em
termos eloqüentes, as outras três. Pois assim fala aos romanos: “Todos pecaram e
estão destituídos da glória de Deus; porém são justificados gratuitamente por sua
graça” [Rm 3.23, 24]. Aqui tens a cabeça e a fonte primeira da salvação: que Deus
nos abraçou com sua graciosa misericórdia. Segue-se: “pela redenção que há em
Cristo Jesus” [Rm 3.24]: aqui tens como que a matéria pela qual a justiça nos é
consumada; “pela fé em seu sangue” [Rm 3.25]: aqui se mostra a causa instrumental,
mercê da qual a justiça de Cristo nos é aplicada. Por último, acrescenta o fim
quando diz: “para demonstração de sua justiça, para que ele seja justo e justificador
daquele que é da fé em Cristo” [Rm 3.26]. E para que, de passagem, também denote
que esta justiça consiste em reconciliação, diz expressamente: Cristo nos foi dado
para nossa reconciliação.
Assim também ensina, no primeiro capitulo da Epístola aos Efésios, que, de sua
mera misericórdia, somos recebidos por Deus à graça, e isso se faz pela intercessão
de Cristo, que pela fé todas as coisas são apreendidas para este fim: para que a
glória da divina bondade resplandeça em toda plenitude [Ef 1.3-14]. Quando vemos
todas as partículas de nossa salvação pairando assim fora de nós, como confiaremos
e nos gloriaremos em nossas obras?
Nem mesmo os inimigos mais conjurados da graça divina podem nos mover
controvérsia acerca da causa eficiente, nem acerca da causa final, a menos que
queiram negar toda a Escritura. Nas causas material e formal infundem coloração
enganosa, como se nossas obras mantivessem lugar partido ao meio com a fé e com
a justiça de Cristo. Mas a Escritura protesta contra isso, a qual afirma simplesmente
não só que Cristo nos é por justiça e vida, como ainda que este bem da justiça só se
possui por meio da fé.
João Calvino