Total de visualizações de página

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

A CONFISSÃO AURICULAR NÃO ERA GENERALIZADA, NEM OBRIGATÓRIA ATÉ O TEMPO DE INOCÊNCIO III, PAPA DO SÉCULO XIII

Espanta-me, porém, com que cara ousam contender, dizendo que a confissão acerca da qual estão falando é de ordenação divina, cujo uso, na verdade, confessamos ser muito antigo, o qual, contudo, podemos facilmente convencer que, no passado remoto, era livre. Com efeito, nenhuma lei ou ordenança lhe foi estatuída a respeito antes dos tempos de Inocêncio III, inclusive seus anais o registram. Indubitavelmente, se possuíssem uma lei mais antiga, a teriam citado de preferência ao decreto do concílio lateranense, pondo-se em ridículo até mesmo ante as crianças.56 Em outras coisas, não hesitam em forjar decretos fictícios que atribuem aos mais antigos concílios, para que, pela própria veneração da antigüidade, ofusquem os olhos dos simplórios. Nesta matéria não lhes veio à mente recorrer a tal expediente. Por isso, como se vê claramente por seu testemunho,57 ainda não se passaram trezentos anos desde que foi lançado por Inocêncio III o laço e imposta a necessidade de confessar-se. E para que silencie acerca do decurso de tempo, basta a barbárie dos termos para desacreditar essa lei. Ora, que os bons padres ordenam a todo indivíduo, de um e outro sexo, confessar uma vez todos os anos, todos os pecados, ao seu próprio sacerdote, daí se segue que ninguém que não seja homem e mulher estaria obrigado a se confessar; e, portanto, que o mandamento de confessar-se obriga somente os que são hermafroditas. Então, fatuidade mais crassa se pôs à mostra em seus discípulos, enquanto se revelam incapazes de explicar o que significa “seu próprio sacerdote”.
Seja o que for que vociferem todos os mercenários arengueiros do papa, sustentamos não ser Cristo o autor dessa lei que obriga os homens a enumerar seus pecados; de fato, passaram mais de mil duzentos anos desde a ressurreição de Cristo antes que qualquer lei desse gênero fosse promulgada. E, assim, esta tirania foi finalmente introduzida quando, extinta a piedade e a doutrina, os simulacros de pastores já haviam assumido para si toda e qualquer sorte de desregramento, sem distinção. Ademais, subsistem luminosos testemunhos, tanto nas histórias quanto em outros escritores antigos, que ensinam ter sido esta uma disciplina política, instituída pelos bispos, não uma lei imposta por Cristo ou os apóstolos. Trarei à consideração apenas um dentre muitos testemunhos, que será não obscuro comprovante desta matéria. Sozômeno menciona que esta ordenança dos bispos foi diligentemente observada nas igrejas ocidentais, mas especialmente em Roma. Com isso ele mostra que esta não foi uma prática geral de todas as igrejas. Entretanto, ele diz que um dentre os presbíteros era especialmente designado para presidir esta função. Com isto ele impugna sobejamente o que essesenganosamente sustentam acerca das chaves dadas indiscriminadamente a toda a ordem sacerdotal para esta prática. Na verdade, porém, a confissão auricular não era função comum de todos os sacerdotes, mas deveres individuais de um que havia sido para isso escolhido por seu bispo. Esse, a quem ainda em cada igreja catedral chamamde penitenciário, é o que toma conhecimentodos crimes mais graves e a censura dos quais é tomada para exemplo. Em seguida acrescenta que esse fora também o costume em Constantinopla, até que certa matrona, simulando confessar-se, foi apanhada encobrindo com essa simulação a relação amorosa que mantinha com um diácono. Diante desse delito, Nectário, bispo dessa igreja, homem eminente, não apenas pela santidade, como também pela erudição, aboliu o rito da confissão. Aqui, que esses asnos ergam as orelhas. Se a confissão auricular era uma lei de Deus, como teria Nectário ousado suprimi-la e desarraigá-la? Acusarão a Nectário de heresia e de cisma, santo homem de Deus, aprovado por todos os sufrágios dos antigos? Com a mesma sentença, porém, condenarão a igreja constantinapolitana, na qual, afirma Sozômeno, o costume de confessar-se fora negligenciado não apenas por um tempo, ao contrário, havia caído em desuso até onde sua lembrança se estendia. Na verdade, acusem como culpada de defecçãonão só a igreja constantinopolitana, mas a todas as igrejas orientais, as quais, se estão afirmando a verdade, negligenciaram uma lei inviolável e ordenada a todos os cristãos.

João Calvino