Agora pode-se também compreender de que natureza são os frutos do arrependimento,
a saber, deveres de piedade para com Deus e deveres de caridade para com
os homens; além disso, santidade e pureza na vida toda. Enfim, com quanto maior
diligência conforma alguém sua vida à norma da lei de Deus, tanto mais seguros
sinais exibe de seu arrependimento. E assim o Espírito, enquanto nos exorta ao arrependimento,
freqüentemente nos chama ora aos preceitos da lei, individualmente,
ora aos deveres da segunda tábua, visto que, em outras passagens, após haver condenado
a impureza na própria fonte do coração, então desceu aos testemunhos externos
que assinalam sincero arrependimento. Dentro em pouco, na descrição da vida cristã,
porei diante dos olhos dos leitores uma imagem viva desta matéria.
Não coligirei testemunhos dos profetas, com os quais, em parte, escarnecem das
parvoíces daqueles que porfiam por propiciar a Deus mediante cerimônias, e mostram serem elas puras ridicularias; em parte, ademais, ensinam que a integridade
exterior da vida não é o ponto capital do arrependimento, porquanto Deus olha para
o coração. Todo aquele que porventura for medianamente versado na Escritura, por
si só compreenderá, sem a advertência de outrem, que onde se tem de tratar com
Deus nada se realiza salvo se começamos do sentimento interior do coração. E a
passagem de Joel [2.13] valerá não pouco para se compreenderem outras: “Rasgai
vossos corações e não vossas vestes.” Um e outro desses pontos foi também sucintamente
expresso nestas palavras de Tiago [4.8]: “Limpai as mãos, purificai o coração,
ó pecadores de espírito doble”, onde, no primeiro membro, de fato se refere ao
acessório; entretanto, na segunda parte, se mostra sua fonte e princípio, isto é, que
têm de abster-se das impurezas ocultas, para que se erija a Deus um altar no próprio
coração.
Além disso, há também algumas práticas externas, das quais fazemos uso, em
particular, como remédios, seja para humilhar-nos, seja para domar-nos a carne;
todavia, em público, para testificação de nosso arrependimento. Mas estas práticas
emanam dessa vindicação de que fala Paulo em 2 Coríntios 7.11, pois que essas
coisas são próprias da alma aflita: ficar em desalinho, em lamúria, em lágrimas,
fugir à pompa e a toda e qualquer ostentação, abdicar de todos os deleites. Além
disso, aquele que sente quão grande mal é a rebelião da carne busca todos os remédios
mercê dos quais venha a coibi-la. Finalmente, aquele que pondera bem quão
grave é haver violado a justiça de Deus, não pode descansar até que, em sua humildade,
haja dado glória a Deus.
Práticas dessa natureza os escritores antigos freqüentemente as mencionam, quando
falam dos frutos do arrependimento. Mas, embora nem de longe depositem nelas
a essência do arrependimento, entretanto os leitores me perdoarão se eu disser o que
sinto: a mim me parece que eles de fato insistem nestas práticas mais do que é justo.
E se alguém ponderar esta matéria com sabedoria, haverá de concordar comigo,
como espero, em que esses têm excedido duplamente a medida. Ora, como enfatizassem
tão insistentemente, e recomendassem com imoderados encômios essa disciplina
corporal, de fato conseguiam que o populacho a abraçasse com diligência
maior, contudo de certo modo obscureciam o que deve ser de muito maior relevância.
Então, ao aplicarem os castigos, foram um tanto mais rígidos do que a mansidão
eclesiástica o admite, como se haverá de tratar em outro lugar.
João Calvino