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sábado, 1 de setembro de 2018

INTERIORIDADE E EXTERIORIDADE DO ARREPENDIMENTO EM SEUS FRUTOS

Agora pode-se também compreender de que natureza são os frutos do arrependimento, a saber, deveres de piedade para com Deus e deveres de caridade para com os homens; além disso, santidade e pureza na vida toda. Enfim, com quanto maior diligência conforma alguém sua vida à norma da lei de Deus, tanto mais seguros sinais exibe de seu arrependimento. E assim o Espírito, enquanto nos exorta ao arrependimento, freqüentemente nos chama ora aos preceitos da lei, individualmente, ora aos deveres da segunda tábua, visto que, em outras passagens, após haver condenado a impureza na própria fonte do coração, então desceu aos testemunhos externos que assinalam sincero arrependimento. Dentro em pouco, na descrição da vida cristã, porei diante dos olhos dos leitores uma imagem viva desta matéria. Não coligirei testemunhos dos profetas, com os quais, em parte, escarnecem das parvoíces daqueles que porfiam por propiciar a Deus mediante cerimônias, e mostram serem elas puras ridicularias; em parte, ademais, ensinam que a integridade exterior da vida não é o ponto capital do arrependimento, porquanto Deus olha para o coração. Todo aquele que porventura for medianamente versado na Escritura, por si só compreenderá, sem a advertência de outrem, que onde se tem de tratar com Deus nada se realiza salvo se começamos do sentimento interior do coração. E a passagem de Joel [2.13] valerá não pouco para se compreenderem outras: “Rasgai vossos corações e não vossas vestes.” Um e outro desses pontos foi também sucintamente expresso nestas palavras de Tiago [4.8]: “Limpai as mãos, purificai o coração, ó pecadores de espírito doble”, onde, no primeiro membro, de fato se refere ao acessório; entretanto, na segunda parte, se mostra sua fonte e princípio, isto é, que têm de abster-se das impurezas ocultas, para que se erija a Deus um altar no próprio coração. Além disso, há também algumas práticas externas, das quais fazemos uso, em particular, como remédios, seja para humilhar-nos, seja para domar-nos a carne; todavia, em público, para testificação de nosso arrependimento. Mas estas práticas emanam dessa vindicação de que fala Paulo em 2 Coríntios 7.11, pois que essas coisas são próprias da alma aflita: ficar em desalinho, em lamúria, em lágrimas, fugir à pompa e a toda e qualquer ostentação, abdicar de todos os deleites. Além disso, aquele que sente quão grande mal é a rebelião da carne busca todos os remédios mercê dos quais venha a coibi-la. Finalmente, aquele que pondera bem quão grave é haver violado a justiça de Deus, não pode descansar até que, em sua humildade, haja dado glória a Deus. Práticas dessa natureza os escritores antigos freqüentemente as mencionam, quando falam dos frutos do arrependimento. Mas, embora nem de longe depositem nelas a essência do arrependimento, entretanto os leitores me perdoarão se eu disser o que sinto: a mim me parece que eles de fato insistem nestas práticas mais do que é justo. E se alguém ponderar esta matéria com sabedoria, haverá de concordar comigo, como espero, em que esses têm excedido duplamente a medida. Ora, como enfatizassem tão insistentemente, e recomendassem com imoderados encômios essa disciplina corporal, de fato conseguiam que o populacho a abraçasse com diligência maior, contudo de certo modo obscureciam o que deve ser de muito maior relevância. Então, ao aplicarem os castigos, foram um tanto mais rígidos do que a mansidão eclesiástica o admite, como se haverá de tratar em outro lugar.

João Calvino