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sábado, 1 de setembro de 2018

OS EXCESSOS DOS ANABATISTAS E A IMPROCEDENTE CONCEPÇÃO DA AÇÃO DO ESPÍRITO POR ELES SUSTENTADA, A PERFEIÇÃO QUE PROCLAMAM LONGE ESTÁ DA SANTIFICAÇÃO NAS ESCRITURAS

Certos anabatistas, nesta época, imaginam não sei que frenética imoderação em lugar da regeneração espiritual, ou, seja, que os filhos de Deus, restaurados ao estado de inocência, já não devem preocupar-se em refrear-se a libidinosidade da carne; antes, importa seguir-se ao Espírito como o Guia, sob cuja ação nunca se transvia ao erro. Seria incrível que a mente do homem cedesse a tal desvario, não fosse o fato de que vociferam aberta e ostensivamente acerca deste seu dogma. Na verdade, isso de fato é monstruoso, porém é justo que sofram tais castigos de sua sacrílega ousadia os que induziram a mente a converter em mentira a verdade de Deus. Porventura se cancelará assim toda escolha de indigno e honesto, de justo e injusto, de bom e mau, de virtude e vício? Tal diferença, dizem eles, procede da maldição do velho Adão, da qual fomos eximidos através de Cristo. Portanto, entre fornicação e castidade, sinceridade e dolo, verdade e mentira, eqüidade e rapina, já não haverá nenhuma diferença. “Deixa de lado”, dizem eles, “o fútil temor; o Espírito não ordenará nada de mau, desde que, segura e intrepidamente, te confies à ação dele.”
Quem não se sentirá estupefato diante dessas monstruosidades? No entanto é a filosofia popular entre aqueles que, cegados pela loucura das concupiscências, se despojam do senso comum. Mas, indago eu, que Cristo eles nos forjam e que Espírito arrotam? Ora, nós reconhecemos a um só Cristo e a um só Espírito, o Espírito dele, a quem os profetas recomendaram e o evangelho proclama ser revelado, do qual nada desse gênero aí ouvimos. Esse Espírito não é o patrono do homicídio, da fornicação, da embriaguez, da soberba, da contenção, da avareza, da fraude; pelo contrário, é o autor do amor, da pudicícia, da sobriedade, da humildade, da paz, da moderação, da verdade. Não é um Espírito frenético e que inconsideradamente se precipite ao que é certo e ao que é errado; ao contrário, pleno de sabedoria e entendimento, em virtude do quê distingue corretamente entre o justo e o injusto. Não instiga à licenciosidade dissoluta e desenfreada; pelo contrário, conforme discrimina o lícito do ilícito, ensina a conservar comedimento e moderação. Contudo, por que laboramos por mais tempo em refutar essa loucura bestial? Aos cristãos, o Espírito do Senhor não é uma louca fantasia que eles próprios ou engendraram em um sonho ou o receberam inventado por outros; pelo contrário, buscam dele, religiosamente, o conhecimento das Escrituras, onde estes dois pontos se ensinam a respeito dele: primeiro, que ele nos foi dado para santificação, a fim de que, expurgados de imundícies e manchas, nos conduza à obediência da justiça divina, obediência que não pode existir, salvo se forem domadas e subjugadas as concupiscências, às quais estes querem soltar as rédeas; segundo, nos deixando purificar por sua santificação que de muitas falhas e de muita fraqueza, sejamos bloqueadas por quanto tempo estivermos encerrados na massa de nosso corpo. Daí se segue que, distanciados da perfeição por longo intervalo, temos sempre de necessariamente progredir; e, enredilhados em imperfeições, com elas lutar dia após dia. Do quê também se segue que, alijada a indolência e despreocupação, importa vigiar de ânimo atento, para que, desprevenidos, não nos deixemos rodear pelas insídias de nossa carne. A não ser que estejamos confiantes em fazer maiores progressos que o Apóstolo, que era ainda atormentado por um anjode Satanás [2Co 12.7], “desde que o poder se aperfeiçoasse na fraqueza” [2Co 12.9], e que em sua própria carne exibia, não disfarçadamente, essa separação de carne e espírito [Rm 8.2].

João Calvino