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segunda-feira, 1 de outubro de 2018

SEGUNDA OBJEÇÃO REFUTADA: É GROSSEIRA INJUSTIÇA POR PARTE DE DEUS PUNIR A QUEM É CONDENÁVEL POR CAUSA DE SUA PREDESTINAÇÃO, VISTO QUE NÃO É RESPONSÁVEL POR SEUS PECADOS

Da impiedade emerge também outra objeção, a qual, no entanto, visa direta mente não tanto à incriminação de Deus, quanto à vindicação do pecador, ainda que, quem é condenado por Deus como pecador, somente com ignomínia do Juiz pode, afinal, ser justificado. Portanto, assim vociferam as línguas profanas: Por que Deus imputaria aos homens como sendo falha essas coisas cuja necessidade ele impôs em razão de sua predestinação? Ora, que haveriam de fazer? Porventura lutariam contra seus decretos? Mas fariam isso em vão, uma vez que não possam fazêlo absolutamente. Logo, são punidos por essas coisas não por direito cuja causa primordial está na predestinação divina. Abster-me-ei aqui da defesa a que recorre a maioria dos escritores eclesiásticos, ou, seja, que a presciência de Deus não impede que o homem se repute pecador, uma vez que Deus esteja a antever coisas más daquele, não suas. Pois a cavilação não pararia aqui; mas avançariam argumentando que, não obstante, se Deus o quisesse, poderia impedir os pecados que previra. Como não o fez, senão que criou o homem para que viva desta maneira no mundo, e a divina providência o colocou nesta condição, que necessariamente há de fazer quanto faz, não deve imputar-lhe esse crime, o qual não pode evitar e ao qual é compelido pela vontade de Deus. Portanto, vejamos como se deve resolver corretamente esta dificuldade. Antes de mais nada, entre todos deve estar firmemente estabelecido o que diz Salomão: “O Senhor fez todas as coisas para atender a seus próprios desígnios, até o ímpio para o dia do mal” [Pv 16.4]. Uma vez que esteja na mão de Deus a disposição de todas as coisas, quando reside em seu poder o arbítrio da salvação e da morte, em seu conselho e arbítrio assim ordena que entre os homens nasçam aqueles devotados à morte certa desde a madre, para que, por meio de sua condenação, lhe glorifiquemo nome. Caso alguém alegue que da providência de Deus não se lhes impõe nenhuma necessidade, antes, porque sua depravação futura foi prevista, foram por ele criados nesta condição, este tal diria algo, porém não tudo. De fato os antigos costumam às vezes fazer uso desta solução, porém de forma duvidosa. Os escolastas, porém, descansam nela como se nada pudesse opor-se contra. De minha parte concedo de bom grado que a mera presciência não impõe às criaturas nenhuma necessidade, ainda que nem todas concordem, pois há os que também querem que ela seja a própria causa das coisas. Com efeito, a mim parece haver Lourenço Valla enxergado mais aguda e mais sabiamente, homem este de outra sorte não grandemente versado nas coisas sagradas, o qual mostrou ser supérflua tal contenda, uma vez que tanto a vida, como também a morte, são atos mais da vontade divina do que da presciência divina. Se Deus apenas antevisse os eventos dos homens, contudo de seu Arbítrio também não os dispusesse e ordenasse, então, não sem causa, se agitaria a questão de se por acaso sua presciência tenha influência sobre sua necessidade. Quando, porém, não por outra razão haja de antemão visto as coisas que hão de acorrer, senão porque assim decretou que acontecessem, em vão se move litígio acerca da presciência, uma vez ser evidente que todas as coisas sucedem antes por sua ordenação e arbítrio.

João Calvino