Ninguém que queira ser tido por homem de bem e temente a Deus se atreverá a
negar simplesmente a predestinação, pela qual Deus adota a uns para a esperança da
vida, a outros destina à morte eterna, porém, a envolvem em muitas cavilações,
sobretudo os que fazem da presciência sua causa. E nós, com efeito, admitimos que
a ambas estão em Deus, porém o que agora afirmamos é que é totalmente infundado
fazer uma depender da outra. Quando atribuímos presciência a Deus, queremos
dizer que ele tem sempre e perpetuamente permanente sob as vistas, de sorte que, ao
seu conhecimento, nada é futuro ou pretérito; ao contrário, todas as coisas estão
presentes, e de fato tão presentes que não as imagina como meras idéias – da maneira
como imaginamos aquelas coisas das quais nossa mente retém a lembrança –,
mas as visualiza e discerne como se estivessem verdadeiramente diante dele. E esta
presciência se estende a todo o âmbito do mundo e a todas as criaturas.
Chamamos predestinação o eterno decreto de Deus pelo qual houve por bem
determinar o que acerca de cada homem quis que acontecesse. Pois ele não quis
criar a todos em igual condição; ao contrário, preordenou a uns a vida eterna; a
outros, a condenação eterna. Portanto, como cada um foi criado para um ou outro
desses dois destinos, assim dizemos que um foi predestinado ou para a vida, ou para
a morte. Deus, porém atesta esta predestinação não só em cada pessoa, mas também deu exemplo dela em toda a descendência de Abraão, da qual fizesse manifesto que
está em seu arbítrio de que natureza seja a condição futura de cada nação.
“Como o Altíssimodividisse os povos e separasse os filhos de Adão, sua porção
foi o povo de Israel, o cordel de sua herança” [Dt 32.8, 9]. A separação está ante os
olhos de todos: na pessoa de Abraão, como que em um tronco seco, rejeitados os
outros, somente um povo é peculiarmente eleito. A causa dessa escolha, porém, não
se põe à mostra, senão que Moisés, para que aos descendentes cortasse a asa de
gloriar-se, ensina que estes se sobressaem somente pelo gracioso amor de Deus.
Ora, ele determina que esta é a causa de sua libertação: que “Deus amou a seus pais
e escolheusua semente após eles” [Dt 4.37]. Mais expressamente em outro capítulo:
“O Senhor não tomou prazer em vós, nem vos escolheu, porque vossa multidão era
mais do que a de todos os outros povos, pois vós éreis menos em número do que
todos os povos. Mas porque o Senhor vos amava ...” [Dt 7.7, 8]. Muitas vezes mais,
nele se repete esta afirmação: “Eis que os céus e o céu dos céus são do Senhor teu
Deus, a terra e tudo o que nela há. Tão-somente o Senhor se agradou de teus pais
para os amar; e a vós, descendência dele, escolheu ...” [Dt 10.14, 15].
Igualmente, em outro lugar preceitua-lhes a santificação, porque foram escolhidospara
ser “seu povo especial” [Dt 7.6]. E, em outro lugar, por sua vez, declara que
seu amor é a causa de sua proteção [Dt 23.5]. Isto proclamam também os fiéis, a
uma voz: “Escolherá para nós nossa herança, a glória de Jacó, a quem amou” [Sl
47.4]. Pois os dotes dos quais foram por Deus adornados atribuem-lhe todos ao
gracioso amor, não só porque sabiam que não foram alcançados por algum mérito
pessoal, mas também que nem o próprio santo patriarca teve virtude suficiente para
adquirir para si e para sua posteridade tão singular prerrogativa e dignidade. E, para
que mais vigorosamente esmagasse toda soberba, lança-lhes em rosto que nada dessa
natureza haviam merecido, visto ser este um povo contumaz e de dura cerviz [Ex
32.9; Dt 9.6]. Também os profetas lançam com freqüência esta eleição diante dos
judeus, de forma odienta e à guisa de reprimenda, visto que haviam se afastado dela
vergonhosamente.
O que quer que seja, adiantem-se agora os que querem restringir a eleição divina
ou à dignidade dos homens ou aos méritos das obras. Quando vêem um povo ser
preferido a todos os outros e ouvem que Deus não se deixou induzir por nenhum
respeito que o levasse a ser mais propenso a uns poucos e maus e indignos, aliás, até
mesmo ímpios e indóceis, porventura litigarão com ele porque quis exibir tal demonstração
de misericórdia? Com efeito, muito menos impedirão sua obra com
suas vozes estridentes; nem atirando ao céu as pedras dos insultos haverão de ferir
ou danificar a justiça; antes elas haverão de cair em suas cabeças.
Os israelitas são também lembrados deste princípio de um pacto de graça, quando
se trata de dar graças a Deus, ou de confirmar-se numa esperança em relação ao tempo futuro. “Ele nos fez, e não nós mesmos”, diz o Profeta, somos seu povo e
ovelhas de seu pastoreio” [Sl 100.3]. A negação que emprega não é supérflua: “e
não nós mesmos”, o que se adiciona com vistas a excluir-nos, para que saibam que
Deus é não só o autor de todas as coisas boasque os fazem mais excelentes, mas que
também ele mesmo é a causa, porque não existia neles nada que os fizesse dignos de
tão grande honra.
Com estas palavras também ordena que estejam contentes com o simples beneplácito
de Deus: “Vós, semente de Abraão, seu servo; vós, filhos de Jacó, seus
escolhidos” [Sl 105.6]. E depois de enumerar os benefícios contínuos de Deus como
frutos da eleição, afinal conclui que ele agiu com tanta generosidade porque “se
lembrou de seu pacto” [Sl 105.42]. O cântico de toda a Igreja faz ecoar esta doutrina:
“Pois não conquistaram a terra por sua espada, nem seu braço os salvou, mas tua
destra e teu braço, e a luz de tua face, porquanto te agradaste deles” [Sl 44.3]. Devese,
porém, notar que onde se faz menção da terra, ela é o símbolo visível da separação
secreta em que se contém a adoção. Davi, em outro lugar, exorta ao povo à
mesma gratidão: “Bem-aventurada a nação cujo Deus é Jeová, o povo ao qual escolheu
para si por herança” [Sl 33.12]. Samuel os anima à boa esperança: “Deus não
vos abandonará, por amor de seu grande nome, já que lhe aprouve criar-vos para
serdes seu povo” [1Sm 12.22]. Como também Davi se arma para a batalha, quando
sua fé é atacada: “Bem-aventurado aquele a quem escolheste, e fazes chegar a ti,
para que habite em teus átrios” [Sl 65.4].
Mas, a eleição oculta em Deus foi confirmada tanto pelo primeiro livramento,
quanto pelo segundo e por outros benefícios intermédios, Isaías transfere o termo
eleger ao fato de que “Deus se compadecerá de Jacó e ainda elegerá de Israel” [Is
14.1]; porquanto, delineando o tempo vindouro, o Profeta diz que o sinal da eleição
estável e sólida é o ajuntamento do povo remanescente, ao qual parecera haver
abdicado, ajuntamento que nesse tempo parecera haver sido frustrado. Além disso,
quando se diz em outro lugar: “Eu te escolhi e não te rejeitei” [Is 41.9], o Senhor
enfatiza o curso contínuo da insigne liberalidade de sua paterna benevolência. Mais
expressamente, diz o Anjo em Zacarias [2.12]: “Deus ainda escolherá a Jerusalém”,
como se, castigando-a mais duramente, a houvesse rejeitado, ou como se o exílio
houvesse sido a interrupção da eleição, a qual, todavia, permanece inviolável, ainda
que suas evidências nem sempre se exibam tão nitidamente.
João Calvino
Escola Bíblica Conhecedores da verdade - O objetivo deste blog e levar você a conhecer a verdade que liberta de todo o Engano. Nesses últimos tempos, muito se tem ouvido falar do evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, porém de maneira distorcida e muitas vezes pervertida, com heresias disfarçada etc. “ ...e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” João 8.32